This obituary, written by Eduardo Pitta, appeared in the Portuguese newspaper Público on 28 August 2007.
Alberto de Lacerda
O poeta expatriado
Nasceu em Moçambique, passou pelo Brasil e pelos Estados Unidos e viveu mais de 50 anos em Londres. Poeta e cronista sibilino, Alberto de Lacerda nunca acertou contas com Portugal, país que não passou de um intervalo na sua vida.
Com a morte inesperada de Alberto de Lacerda, ao fim da tarde de domingo, em Londres, desaparece uma das grandes vozes da poesia portuguesa da segunda metade do século XX, embora isso não fosse percetíval para muita gente, porque o autor de Palácio (1961) foi toda a vida um expatriado. Carlos Alberto Portugal Correia de Lacerda nasceu na ilha de Moçambique, a 20 de Setembro de 1928, tendo abandonado a colónia em 1946, pouco antes de completar 18 anos. Em Lisboa depressa fez amizade com outros poetas, em particular Rui Cinatti, de quem mais tarde organizou uma antologia, Sophia de Mello Breyner Andresen, a Diotima de tantos dos seus poemas, Mário Cesariny, Raul de Carvalho, António Ramos Rosa e Luís Amaro.
Foi curto, o intervalo português. Mesmo assim, em 1950, teve tempo de fundar, com David Mourão-Ferreira, António Manuel Couto Viana e Luiz de Macedo, as folhas de poesia Távola Redonda, que secretariou até ao número 5. Um imbróglio burocrático levou-o a bater com a porta e a afastar-se do grupo. [Os detalhes do episódio são descritos por Couto Viana em Colegial de Letras e Lembranças, 1994.] Antes da partida definitiva para Londres, no Verão de 1951, os Cadernos de Poesia, então dirigidos por Jorge de Sena, José-Augusto França, José Blanc de Portugal e Rua Cinatti, ocuparam todo o fascículo oito com 34 poemas do jovem poeta.
Em Londres, Alberto de Lacerda começou por trabalhar na BBC, onde divulgou a cultura portuguesa, e em pouco tempo frequentava os salões literários da capital britânica. Talvez por isso, Herberto Helder tenha dito que “Alberto de Lacerda tem Londres invadida por sofás” (cf. Photomaton & Voz, 1979). Um dia, tinha Lacerda 23 anos, Dame Edith Sitwell convidou-o para almoçar com T. S. Eliot e o compositor William Walton. Não era já a magia do grupo do Bloomsbury, mas andava lá perto. Não por acaso, foi em Londres que foi publicado o seu primeiro livro, 77 Poems (1955), sob chancela da Allen & Unwin e com prefácio do sinólogo Arthur Waley. Esse livro de estreia teve uma calorosa recepção por parte de críticos tão reputados como Quentin Stevenson, J. M. Cohen e David Wright. E é capaz de ter sido no momento em que o Times Literary Supplement lhe dedicou uma recensão atenta, que a pátria distante começou a olhar para ele de viés.
Em 1959, por sugestão dos poetas Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, partiu para o Brazil, onde ficou cerca de um ano [sic] dando conferências e recitais em universidades e outras instituições. Finalmente, em 1961, um livro em Portugal: Palácio. Mas 1961 foi o ano de toda a ortodoxia crítica, e não era fácil reparar em versos como estes:
“Há sempre imensa gente nos meus versos
Embora não se note à primeiro leitura.”
É verdade que Alberto de Lacerda teve críticos empenhados, como Jorge de Sena, Eduardo Lourenço e António Ramos Rosa, mas nunca aqueles que, ao sabor das várias circunstâncias, foram moldando o cânone. A distância, e uma desatenção crescente por parte do jornalismo cultural, fizeram o resto. Espírito inconformado, dotado de uma língua de prata como poucos, pagou sempre na mesma moeda.
Em Julho de 1987, entrevistado por mim para o Journal de Letras, perguntou sobre a importância de alguns poetas, respondeu:
“Falar em poetas maiores é perigosíssimo. Há muito poucos poetas maiores num século, em qualquer língua. Atravessa-se em Portugal uma inflação do adjectivo ditirâmbico. Dentre os nomes que cita há pelo menos dois que nem por sombras podem ser considerados grandes e, muito menos, maiores: Carlos de Oliveira e Jorge de Sena. Não, meu caro Pitta, nos últimos 15 anos não apareceu nenhum grande maior poeta. Apareceram alguns poetas francamente bons. E já não é pouco!”
Convenhamos alguns que num país dado a mesures era muita idiossincrasia junta.
Recital em Washington
Entre 1967 e 1993, Alberto de Lacerda leccionou em universidades americanas, primeiro em Austin (no Texas), depois em Nova Iorque, por último em Boston, onde esteve a partir de 1972. Durante esses 26 anos, passava um semestre de cada lado do Atlântico. Um dia, já depois do 25 de Abril, o dirigente máximo de organismo (o Instituto de Alta Cultura) que em Portugal garantia a logística dos docentes portugueses no estrangeiro, “descobriu” que Alberto de Lacerda não tinha habilitação própria, ou seja, licenciatura. E não hesitou: mandou rescinder o contrato. As autoridades académicas americanas não queriam acreditar que o “seu” professor de Poética fosse posto de lado por tal motivo. E fizeram o óbvio: contrataram-no directamente.
Tal como acontecera em Inglaterra, o convívio com a intelligentzia americana foi fácil. Entre outros, conheceu e privou com os poetas Marianne Moore e Thom Gunn e com o pintor David Hockney, frequentou os sofisticados círculos literários da costa Leste e, em 1969, tinha uma antologia sua publicada pela Universidade do Texas, Selected Poems. Foi o primeiro e único autor de língua portuguesa a dar um recital da sua poesia na Biblioteca do Congresso, em Washington. E foi ainda, em 1973, o editor de Maio, International Poetry Magazine, de que saiu um único número, com colaboração de Mário Cesariny, Octavio Paz, Jorge Guillén, Murilo Mendes, Dominique Fourcade e Augusto de Campos.
Paixão pela pintura
O descaso português não encontra explicação na distância, esse estar longe da paróquia do Chiado, porque, além dos livros, Alberto de Lacerda tem colaboração dispersa por jornais e revistas tão diferentes como o Diário de Lisboa e a Colóquio-Letras, ou o Diário de Notícias e a Colóquio-Artes, onde escreveu sobre pintura, paixão de toda a vida (são lendárias as suas amizades com pintores: Maria Helena Vieira da Silva, Arpad Szenes, Menez, Jorge Martins, Paula Rego, Victor Willing, etc.), para já não falar de textos publicados em Encounter ou The Listener.
Tendo em vista a diáspora, os sobressaltos da edição compreendem-se melhor. Por exemplo, entre o terceiro e o quatro livro – isto é, entre Exílio, 1963, e Tauromagia, 1981 -, verificou-se um inexplicável hiato de 18 anos. Em 1984, por um breve lapso, pareceu chegada a sua hora portuguesa. Nesse ano saiu o primeiro volume de Oferenda, volume que colige a poesia publicada entre 1951 e 1963. Do período fazem parte alguns dos poemas mais conhecidos do autor, como esta pequena estrofe de Dezembro de 1962:
“O exílio é isto e nada mais
Na sua forma mais perfeita:
Hoje na terra de meus pais
Somente a luz não é suspeita.”
A seguir publicaram-se Elegias de Londres (1987), Meio-Dia (1988), que ganhou o Prémio de Poesia do PEN Clube, Sonetos (1991) e, em 1994, o ansiado segunda volume de Oferenda, reunido poemas inéditos escritos entre 1963 e 1970, como os que dão corpo a Mecânica Celeste, a melhor e mais densa das sequências do conjunto, onde podemos ler poemas como este:
“O quarto ao lado tem um caralho com um dragão amarelo
Que ameaça a virgindade do meu filho
O cu do meu filho é branco
O caralho amarelo é negro
O perigo amarelo é o meu vizinho negro
Que o meu filho branco combate no Vietnam
Para salvação da minha cona branca
O caralho do meu filho pertence à minha cona
Quem disser o contrário é comunista
Como diz o Império Britânico cagando
Muito sério
Todas as manhãs no trono da Sala do Trono da Casa Branca:
América – love it or leave it.”
Razão tinha Eduardo Lourenço para se lhe referir nestes termos: “Sob o silencioso desdém ou a fulgurante ironia poucos adivinhariam que Alberto de Lacerda era já nessa época de aparentes certezas um exilado de si mesmo, escolhido com infalível mirada pela musa exigente da pura melancolia e da liberdade” (cf. Alberto de Lacerda, o mundo de um poeta, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987).
Jorge de Sena, que o conheceu bem, falou dele como de um ser de eleição, não obstante o “convívio espiritual complicado e exigente, que uma noção de missão específica da poesia, igualmente distante do angelismo e do sensualismo cínico, defendeu de certa disponibilidade adolescente” (cf. Líricas Portuguesas, II Vol., 1983). Não se pode dizer o mesmo de muitos dos seus pares.
Outra arca mítica
Simplificando muito, pode-se dizer que a obra de Alberto de Lacerda vive em permanente confronto com a tripla pulsão da melancolia, da liberdade e da iconoclastia:
“O tigre que caminha nos meus gestos
Tem a graça insolente dos navios.”
Os últimos livros, Átrio (1977) e Horizonte (2001), não têm a força dos melhores momentos, como quando, a pretexto de Surguei Bondarchuck, escrevia:
“Imagens da infância me perseguem
Desde essa tarde em que surgiste à porta
Com lágrimas migratórias invisíveis
Vinhas de habitar
As planícies raras da minha infância
E o vento que trouxeste sacudido
Pela estepe
Deu-me o tremor das deslocações oceânicas […] Lá fora
Na noite americana
Tudo era branco russo abençoado.”
Ou, num dos raros momentos em que explicitou, sem idealização de esteta, a condição homossexual que era a sua:
“Os pés nus correspondem em grinalda
Aos cabelos louros sobre os ombros másculos.”
Ou ainda, à laia de ars poetica, nítida como sempre fez questão:
“Quero que as pátrias todas vão passear
Até ao Jardim Decente
E voltem depois não como pátrias
Mas como gente.”
Não, não é só Pessoa que tem uma arca mítica. A de Alberto de Lacerda contém para cima de mil inéditos – verdade que muitos poems revestem a forma breve do haiku -, até eu guardo cópia de um livro nunca publicado, Pássaro de Fogo, enviado de Boston em 1986. A ver vamos se a Imprensa Nacional, que tem sido o mais regular editor do poeta (cinco volumes), consegue a proeza de o coligir na íntegra.
Além de poeta, e cronista sibilino, Alberto de Lacerda foi autor de colagens, tendo exposto várias vezes, a última das quais, quanto sei, na Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa, em 1987. Coleccionador de arte, parte do espólio foi mostrado ao público no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian. Além de pintura, essa mostra reunia correspondência com inúmeros escritores e artistas, raridades bibliográficas, retratos e outro tipo de iconografia. De facto, em 1987, parecia que o poeta acertara contas com o país. Infelizmente, não acertou.
Alberto de Lacerda, que morreu anteontem, a um mês de completar 79 anos, viveu sempre numa terra de ninguém. A Moçambique, onde nasceu, e que deixou na adolescência, voltou uma única vez (em 1963). Portugal não passou de um intervalo. Não admira que tenha sido em Londres, cidade de que era cidadão honorário, onde viveu durante 56 anos consecutivos, que a morte o tenho surpreendido. John McEwen, o crítico de arte com quem tinha combinado almoçar no domingo, estranhou o atraso e acabou por arrombar a porta. Alberto de Lacerda ainda estava vivo, porém em coma. Morreria horas depois. Conhecendo-o como conheci, sei que teria apreciado o detalhe final.